A liberdade de estarmos sozinhas
Desde cedo me habituei a fazer coisas sozinha. Os meus irmãos e primos levam-me alguns anos, e tirando as raras ocasiões em que tinha amigos da escola por casa, ou eu cirandava por casa deles, brinquei sempre sozinha. Nunca foi um problema. Inventava muitos cenários, os peluches eram as minhas cobaias. Era a professora deles, a cuidadora, a médica, a senhora da administração a quem tinham de ir pedir um papel. Não sei se foi de crescer assim nesta independência lúdica, mas sempre me senti confortável a fazer coisas sozinha. Claro que prefiro ter boa companhia por perto, mas a vida nem sempre nos proporciona horários e energias compatíveis.
Lembro-me da primeira vez que fiz uma actividade sozinha fora de casa. Foi no verão depois do nono ano, eu com os catorze anos por fazer, a minha amiga uns meses mais velha, combinámos ir ver um filme de animação ao cinema. Eu ainda não tinha telemóvel, como quase nenhuma criança na altura. Ficou tudo marcado pela rede fixa dos pais. Mas já não me lembro se foi o ponto de encontro ou a hora que falhou. Esperámos uma pela outra em duas janelas diferentes da dia. Ela foi por casa, eu decidi ir ver o filme na mesma. Ainda me lembro bem da sensação de ser muito crescida, de estar contente por estar ali sozinha. Na sala, outro grupo de pré-adolescentes, nem pareceram estranhar-me. Faltavam-lhes os preconceitos que só a vida adulta traz.
Passei metade dos meus vintes em Londres. Uma cidade de solitários felizes. Ali, ninguém se importa com a pessoa que está a jantar sozinha na mesa ao lado. Nem com a pessoa que estende uma manta no parque só para estar a relaxar na sua própria companhia. Mas por cá, as coisas ainda são um pouco diferentes, principalmente nas cidades mais pequenas. E principalmente se a pessoa que está sozinha é uma mulher. É como se despertássemos uma desconfiança nos outros. Há uns anos fui sozinha até à Covilhã, a cidade onde fiz os meus estudos universitários, e lembro-me de como as pessoas olhavam para mim com estranheza, quando entrava num tasco de petiscos ou me sentava à mesa de um café. Mas o mesmo me aconteceu no Alameda Shopping do Porto, quando me sentei sozinha com o meu jantar depois de uma matinée de cinema. Ou quando estendi a minha toalha, junto a um rio local, numa tarde de verão. Pergunto-me o que estranham as pessoas. Se será a confiança com que me apresento sozinha ou a imaginação que lhes deve encher a cabeça de assumpções.
Seja como for, cada vez vejo mais mulheres a fazer coisas sozinhas. O mundo vai avançando com as suas pequenas mudanças, e quem sabe, um dia teremos a liberdade plena de não nos tentarem adivinhar a vida. De podermos só existir em qualquer lugar. Afinal, eu sempre desconfiei de quem não gosta da sua própria companhia.