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caderno amarelo

caderno amarelo

13
Mar24

Posso só queixar-me um bocadinho?

Esta semana tenho estado doente, mas tenho tentado ser funcional, porque a vida assim o obriga. E isso fez-me pensar. Não sou de me queixar da vida adulta, eu gosto de ser adulta, e a obrigação de trabalhar e ter de pagar as contas não me chateia. Pelo contrário, dá-me a independência e a liberdade de fazer aquilo que eu quero, e usar o meu tempo livre como quiser. Claro está, não tenho filhos. Mas há um coisa chata em ser adulta. Ficar doente. Lembro-me de há uns anos, quando não vivia em Portugal, ter tido uma amigdalite e não conseguir falar. Quando liguei à minha chefe, sem voz, murmurando o que conseguia, que não podia ir trabalhar, ela fez um drama. Apesar do assédio laboral, não ia ser de todo possível trabalhar (já que implicava falar com pessoas). Passado uns anos, tive um outro episódio daquelas gripes que nos deixam tombados, e desta feita, talvez com toda experiência de assédio laboral que sempre tinha tido (inclusive em Portugal), fiz-me forte e fui trabalhar. Quando o meu chefe me viu, mandou-me logo para casa. Há humanos entre os humanos, afinal. E ainda bem que o fez. Fiquei uma semana de cama. Tive de me arrastar para ir ao médico, e depois arrastar-me até à farmácia. Tive de fazer as minhas refeições, não que eu quisesse muito comer. Quando dizem que estamos sozinhos no mundo, acho que se referem a momentos como estes. Que mais cedo ou mais tarde, na vida adulta ou velhice de todos nós, vai haver algum momento em que não está lá absolutamente ninguém e temos de usar todas as nossas forças para superar as nossas dores. É sempre chato ficar doente, mas quando somos miúdos, não vamos à escola, não temos de fazer nada em casa e podemo-nos queixar à vontade da nossa maleita. Quando somos adultos, percebemos que o mundo não pára porque nós estamos em estado zombie, nem nós podemos parar. Trabalho, que a não ser que esteja muito mal, tenho de o fazer. Compromissos, pelo mesmo motivo. Tarefas domésticas, porque vivendo sozinha, ninguém vai fazer o jantar, lavar a loiça ou levar o lixo por mim. E eu não tenho filhos. Imagino como será para quem sente que tem uma montanha em cima dos ombros em vez de uma cabeça, e ainda tem de cuidar de petizes. Desculpa mãe, desculpa pai, pelas vezes que tiveram de fazer um esforço extra-humano para cuidar de nós. E já que falo em esforço extra-humano, no trabalho, ninguém quer realmente saber se estamos doentes. Não é que não haja empatia. Não podemos é ser uns bébés chorões porque somos grandinhos e temos de mostrar-nos sempre muito fortes. Mas eu quero queixar-me, e dizer que estou a dar mais do meu máximo para as coisas continuarem a aparecer feitas, como aparecem quando não estou doente. Mas não sou uma criança, e então não digo nada. Se não estou no hospital, é porque está tudo bem. Por isso calo-me e faço o que tenho a fazer. E é esta a diferença de ser adulto. Acho que merecíamos uma palmadinhas nas costas. 

07
Mar24

Esta coisa do feminismo, pá

O feminismo luta pela emancipação da mulher em todo o mundo. Não, não luta só pelo direito de andarmos aí com pêlo nos sovacos sem que nos chateiem a cabeça ou andarmos de perninha bem feita pela rua sem que nos chateiem a cabeça. O feminismo luta por todas as mulheres de todas as cores e formas, de todo o mundo. Luta contra o casamento de meninas com homens, luta contra a mutilação genital, luta contra a violência doméstica, luta contra o feminicídio, luta contra o abuso e assédio sexual, luta contra a subordinação laboral e doméstica, e a subordinação do próprio corpo da mulher, que em muitos lugares é mais pertença da sociedade do que dela própria.
Até não nos convencermos que todos, mas mesmo todos, só temos a ganhar com a igualdade de género, as coisas efectivamente não vão mudar.
Eu não posso olhar para trás e dizer "tornei-me feminista quando...", porque acho que sempre o fui, mesmo quando ainda desconhecia o conceito. Tenho dois irmãos, que sempre, como eu, ajudaram em casa, temos o mesmo humor e sempre mandámos as mesmas piadas, brinquei com os carrinhos e os playmobil deles (a brincadeira favorita dos três na infância), usei a roupa deles quando me serviu, assim como joguei à bola com os vizinhos, rapazes e raparigas, e andávamos "à batatada" uns com os outros quando as coisas corriam menos bem.
Portanto, nunca me senti diferente dos rapazes e penso que na infância, nem as outras meninas que conheci, se sentiam. Mas depois cresci, entrei na adolescência, e a sociedade começou a dizer-me como ou não me deveria comportar. Comecei a sentir que ser engraçada e mandar piadas não era "coisa de rapariga", e que aliás, o nosso papel era ser o alvo das piadas. Comecei a sentir que ser rapariga não era fixe, e a única coisa positiva que podíamos ser era "giras e estilosas". Comecei a verificar que existe uma curiosidade perversa quanto à sexualidade feminina e essa perversidade começa desde tenra idade. Lembro-me de casos de bullying na minha escola a raparigas que eram apanhadas a "curtir" com os rapazes atrás dos balneários. Reparem, eram elas que eram humilhadas em "praça pública" por serem umas perversas, não eles, que na maior parte dos casos, ajudavam ao circo, ou à fogueira. Tenho pena de não ter tido a coragem de intervir, mas o que sabemos nós com doze, treze anos. A única coisa que eu tentava fazer na escola era passar o mais despercebida possível. Mas claro que como era assim a dar para o tótó, não consegui. Lembro-me de sofrer de bullying por parte de outras raparigas, só porque levava uma roupa nova para a escola, ou participava numa aula e elas gozavam com o meu esforço, ou tinha um "Excelente" num teste e tinha sido ajuda do professor. Lembro-me de tanto mas tanto bullying de raparigas contra raparigas pelos motivos mais estúpidos que alguém consegue imaginar, apenas para denegrir, que é isto que a sociedade ensina. Ensina as meninas a competirem umas com as outras.
O pior disto tudo é que a "escola" não é só uma fase e o bullying nunca acaba. Os adultos comportam-se exactamente da mesma forma, mas... pelas costas ou nas redes sociais. Muitos homens, e infelizemente umas quantas mulheres, continuam a criticar maliciosamente a aparência física das mulheres, o que elas vestem, o que elas comem, o que elas fazem, para onde vão, com quem vão, etc, etc...
E é por isso que penso muito em algo que li esta semana, aquando do Dia Internacional da Mulher. O feminismo termina e acima de tudo, começa nas mulheres. Temos de educar as mulheres. Temos de as acolher e dizer-lhes "isto não tem de ser assim, e tu não tens culpa, foste formatada por um patriarcado". E a próxima vez que uma mulher ouvir um homem criticar o modo de vida de outra mulher por uma razão completamente absurda e machista, o possa confrontar ao invés de participar na conversa para se sentir aprovada pelo todo poderoso machão. E da próxima vez que uma mulher esteja a usar todas as suas energias para ser perfeita o tempo todo porque a fizeram acreditar que é assim que tem valor, que diga um grande "foda-se" e se vá esticar no sofá, ou vá ter com as amigas para as quais diz nunca ter tempo. Então, também nós seremos unidas e quiçá, o termo sororidade será tão popular como irmandade. Temos de mostrar que os conceitos estão todos errados, e que o Dia da Mulher não existe para o marido lavar a loiça, e já está. É um dia de reflexão e união que tem de se estender para o resto do ano, para a vida.

22
Fev24

Não deixem morrer a amizade

Tenho uma pergunta sincera. Porque é que as pessoas andam tão enfadadas com pessoas?
Nas redes sociais vejo sempre o mesmo tipo de post, "foca-te em ti", "põe-te em primeiro lugar", "não esperes por ninguém". Vivemos na era da cultura do Eu, e do Eu em primeiro, sempre. Claro que temos de olhar por nós próprios, cuidar da nossa saúde física e mental, ir atrás dos nossos sonhos e objectivos, estabelecer limites... Mas à minha volta vejo cada vez mais um certo tipo de coisas a acontecer, coisas que me têm feito pensar. Vejo pessoas a trocar beber uma cerveja com amigos por um treino no ginásio, mesmo que essa semana já tenham ido todos os dias. Vejo pessoas incomodadas por terem sido adicionadas a grupo de amigos no whatsapp. Vejo pessoas a suspirar porque um amigo lhes está a ligar a querer saber se está tudo bem. Vejo pessoas muito reticentes em conhecerem alguém novo num contexto social.
Há cada vez menos interacção social ou é impressão minha?
Não, não é impressão minha. Os sociólogos dizem que os third places estão a desaparecer. Os third places são os lugares que não são a casa nem o trabalho (first and second places), onde as pessoas vão para conviverem com conhecidos e desconhecidos, como por exemplo, o bar ou café, os parques, os centros desportivos e comunitários ou até a igreja. Os third places são considerados uma casa fora de casa, onde as pessoas se sentem confortáveis, e enchem as suas baterias sociais, conversam, riem e partilham experiências. É um conceito do século XX, desenvolvido pelo sociólogo Ray Oldenburg. Mas parece que ter amigos e estar com eles, é a única trend do século passado que não voltou. Porque agora a moda é sermos uns lobos solitários focados nos nossos objectivos, cada vez mais sociais nas redes, cada vez menos sociais na vida real. Parece-me quase um ciclo. Cada vez menos interacção gera cada vez mais frustração em lidar com os outros. E isso nota-se. Agora, no pouco tempo que as pessoas passam com outras, enfadam-se com coisa nenhuma. A paciência é uma virtude mas parece que ninguém quer aspirar a tê-la.
Eu também gosto de estar sozinha. Sou pessoa de estar com pessoas mas também preciso de descansar delas de vez em quando. E não somos todos um pouco assim? Está tudo bem em também querermos estar sós. Eu sempre soube estar sozinha e sei fazê-lo muito bem, e gosto, mas também gosto de sentar-me com um grupo de pessoas, ter um bom jantar, e uma boa conversa, ou até uma conversa da treta, tudo faz parte. Mas porque é que eu sinto que nestes tempos, se eu mostrar entusiasmo em combinar alguma coisa com amigos, não estou a ser fixe? Porque agora o fixe é não querer conviver. Ah.
Não sou fashionable, mas que se lixe. Eu consigo tratar de mim, fazer as minhas coisas, e estar com as pessoas de quem eu gosto. Mais vida houvesse para isso tudo. E querem ficar ainda mais enojadinhos? Gosto de pessoas. Assim, genuinamente. Sim, algumas são chatas, outras dizem coisas sem sentido, e algumas fazem por nos ferir. Umas ficam, outras vão, e outras largamos da mão. Mas nunca vou dizer que não a um bom coração que queira gastar tempo da sua vida na minha companhia. Apreciemos a amizade. Não há laços de sangue, não há interesse sexual, não há obrigações. Só pura e genuína vontade de estar na companhia do outro. É a coisa mais bonita no ser humano. Não deixem morrer a amizade.

18
Fev24

Dia do Sol

"Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada.
     Clarice Lispector, A Hora da Estrela


Abro as persianas enquanto uma música me ecoa na cabeça. "Hoje para sorrir eu não preciso de nada", diz-me a canção na doce voz da Emmy Curl. A casa está vazia e limpa. A vizinhança começa a acordar depois de mim. Sento-me com o meu café. Os domingos são sempre os meus dias favoritos da semana. Sejam de sol ou de chuva. Não ter de ir para lugar nenhum, ou de não fazer particularmente nada, dá-me um conforto especial. Um sentimento que só consigo associar aos domingos. Adoro as manhãs de domingo mais do que muita coisa nesta vida. Faço por acordar um bocadinho mais cedo do que o corpo desejaria, para poder ler ou simplesmente existir a contemplar o silêncio da rua. Cada vez sou mais sensível ao ruído e à pressa das pessoas, o burburinho constante dos dias da semana. Devo ser uma criatura talhada para a vida no campo. Gosto de me reger pelos momentos do dia e não por um relógio a contar o tempo ao segundo. Gosto destes dias em que posso ser eu própria e só fazer as coisas que gosto. Claro que perdia a piada, se todos os dias fossem domingos, eventualmente eu já não saberia valorizar o sossego, nem saberia distinguir-me no meio do silêncio, como o sei fazer no meio do ruído. Mas uma vez por semana posso fazer uma pausa na vida. É um bocado essa a sensação. Tirar um pequeno intervalo. Amanhã volto à vida entre pares.

09
Fev24

Começar de novo

Quantas vezes posso começar de novo? As vezes que eu quiser.
Não fomos feitos para calar as decepções, para aguentar tristezas ou assumir compromissos com a eterna desilusão. Cada novo começo é um tiro no escuro, uma exposição a tudo o que pode dar errado, mas também a tudo o que pode dar certo. Quando estamos num caminho que dá errado, o medo que todos os outros também nos conduzam à desilusão é compreensível, mas não pode ser desculpa para não sair desse lugar.
Conhecem aquela pessoa que fica ali a matutar, presa a um emprego, a uma relação ou a uma cidade com que não se identificam? E que ficam ali a ver os dias passar, iguais, uns a seguir aos outros, enquanto a paixão pela vida se vai diluindo lentamente? Eu conheço. Já me cruzei com várias.
Eu compreendo essa pressão que colocamos em cima de nós. Sentimos essa pressão vinda da sociedade. Parece que vamos obedecendo a ordens mudas na nossa cabeça: Mantém a pose! Arranja marido! Fica no emprego que paga mais! Desistir é para fracos, dizem eles. Que falácia mais falaciosa. 
A verdade é que vemos tudo numa direcção muito linear, e pensamos a partir de uma só perspectiva. E pensamos muito. Pensamos muito e agimos pouco, e a perspectiva é tão pequena para tantos pensamentos, que acaba por tornar-se sufocante. Então que tal ver as coisas do lado de fora? O mundo não vai acabar porque aquela relação terminou, porque se deixou o emprego em que já sabemos fazer tudo, ou porque simplesmente decidimos parar, seja com o que for.
É mais fácil pensar que se é para sofrer, mais vale ficarmos pelo sofrimento ao qual já estamos habituados. Prático, não é? Mas não entendemos que a bolha da frustração só vai encher e encher mais ainda. Nunca pode acabar bem. Há que dar uma oportunidade a essa bolha para voltar ao ponto zero. A isso se chama viver.
Desiste de tudo, mas nunca desistas de tentar.
"Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta outra vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor."
Nada é eterno, e embora não percamos o que ganhamos, porque "nada se perde, tudo se transforma", sempre vamos precisar de ganhar algo novo. E não me refiro ao sentido material das coisas.
É como aquele livro que vamos arrastando connosco para todo o lado ou que fica a ganhar pó na mesa de cabeceira. O livro que insistimos mas nunca acabamos de ler. E enquanto isso, o tempo passa. Poderíamos ter lido um monte de outros livros, aprendido coisas diferentes, conhecido novas perspectivas, mas não. Insistimos em ficar agarrados àquele que já nem conseguimos ler mais. Presos a tão semelhante calhamaço, já não basta virar a página. É preciso fechar o livro. Deixar o desencanto bater e procurar um novo rumo para nos encantarmos de novo. Deixar a solidão (des)confortável e procurar o nosso lugar.
"Olha que a vida não é nem deve ser como uma castigo que tu terás que viver." 
Vai dançar, mesmo que não saibas os passos.

 

 

31
Jan24

Querida Frances

[Uma carta à protagonista do filme de culto indie “Frances Ha”.]

 

Querida Frances,

Espero que esta carta te encontre. Enderecei com o nome de “Frances Ha”, pois é esse o nome que tens na caixa do correio. Mais uma daqueles pormenores que mostram a tua falta de preocupação com trivialidades. Agora que estás mais velha, pergunto-me se já começaste a dar importância às normas e responsabilidades da chamada vida adulta. Se já sabes quando falar ou quando estar calada. Se estás a esta hora a ter uma conversa intelectual num jantar de elite em Manhattan, ou se estás a dançar batendo em todas as mobílias da minúscula sala de estar no teu humilde apartamento em Brooklyn.
Tens visto a Sophie? Ela era a tua melhor amiga, por isso deduzo que continues a falar muito com ela. Ela continua a ser a “tua” pessoa? Aquela com quem trocas um olhar de reconhecimento e amor numa sala cheia de gente? Sei que sempre procuraste esse momento. Era a tua fantasia romântica. E afinal essa pessoa sempre esteve ali do teu lado, a tua melhor amiga. A “tua” pessoa.

Pouco importa o resto, e vocês provavelmente ainda passam horas juntas a falar sobre tudo e sobre nada, partilhando o cigarro, viajando pelo mundo sem sair do mesmo sítio, sendo felizes só por estarem uma com a outra.
Tenho uma certa curiosidade em saber se ainda és amiga do Benji? Se ele foi inteligente o suficiente para ficar na tua vida ou se só se encontram uma ou outra vez por acaso. Sabes que eu acho que ele sempre teve um fraquinho por ti. E por isso mesmo ele sempre te chamava de undateable, porque queria que lhe provasses o contrário.

Continuas a fazer coisas como viajar até Paris por impulso? A correr meia cidade para levantar dinheiro e pagar o jantar aos amigos? A ser a pessoa mais desarrumada — ou ocupada, nas tuas palavras — do mundo?

Eu espero que sim. Todas estas coisas fazem tanto parte de ti, como a tua maior paixão. Deves estar provavelmente envolvida num novo projecto de dança. Quem sabe ainda a ensinar os mais novos a amar da mesma forma esta arte, a qual tu nunca conseguiste amestrar. Sempre foste mais artística do que artista.

Frances, o que mais importa nesta vida é ter paixão pelo que se faz. Mais do que o talento. E tu sempre tiveste e sempre viveste com paixão. Por isso mesmo, conseguiste superar dificuldades como se nada fosse. A tua energia move-te pelo cenário nova-iorquino, sempre com o olhar no amanhã, mesmo não sabendo onde vais passar a próxima noite.

És dessas pessoas que tem o dom de colorir um mundo a preto e branco.

Tinha de te escrever isto porque te ouvi dizer que não te consideravas uma “pessoa a sério”. Ora essa, Frances.

 

Nota: “Frances Ha” é um filme de 2012, do realizador Noah Baumbach, que conta a história de uma jovem nova-iorquina sem casa, e à procura de vingar no mundo da dança, apesar de não ser dançarina. Vi-o há muitos anos e foi profundamente marcante para a jovem da geração millennial que eu era. A personagem Frances é interpretada por uma das minhas heroínas do cinema, Greta Gerwig, a agora realizadora, deixada de fora das nomeações aos Óscares nessa categoria com o seu “Barbie”.

20
Jan24

A auto-sabotadora

No último dia de aulas do sexto ano, o meu professor de português disse-me uma coisa que, embora muitas vezes me esqueça, vai ficar comigo para sempre. "Seja o que for que fizeres na vida, nunca deixes de escrever". Uma frase que eu recordo bem, pois sendo eu uma miúda de onze anos, nunca tinha ouvido um adulto a falar comigo daquela forma, a tomar-me assim por coisa séria. Foi uma sensação nova, mas naquela idade, não soube bem como encaixar aquilo, e claro, acabou por me passar ao lado durante muito tempo. De facto, nunca deixei de escrever, mas quando o fazia, era como uma manifestação física, uma necessidade a que atendia naturalmente quando algo faltava cá dentro, não o fazia por aquele ser o meu talento. No que me dizia respeito, sempre tinha sido uma pessoa sem nenhum talento em especial.
Mas voltemos à escola. Sim, adorava escrever, mas naquela altura queremos é fazer coisas que os outros consideram fixes, e isso não era uma coisa fixe. Pelo menos não no primeiro ciclo. E como eu viria mais tarde a descobrir, nem durante o resto da escolaridade obrigatória. No secundário, talvez fruto da idade, a escrita fluía muito quando eu me dedicava a isso, mas ninguém queria saber. Nem mesmo o jovem professor de português que se tinha comprometido a publicar o melhor artigo no jornal da escola, o qual tinha sido o meu mas que ele perdeu. "Desapareceu da pen", disse-me em frente à turma sem se mostrar particularmente preocupado com isso. Bastava apenas ter-me pedido de novo para lhe passar o texto. Sempre senti que não era suposto eu escrever bem. Era algo que não cabia na caixa em que me tinham colocado. Portanto, não deveria ser real e eu não deveria sequer ter interesse nisso. Eu não era da turma dos artistas e criativos, nem dos filhos de pais "intelectuais". Eu era da turma, como hei-de de descrever, dos futuros operários? De nós não esperavam nem poesia, nem opiniões. Os outros seriam os pensadores e nós seríamos a mão-de-obra do país. É engraçado ver as coisas com esta distância. Como esses planos começam a ser desenhados desde que somos muito novos, como o nosso sistema educativo não é mais do que isso, um sistema.
Avançando para o futuro agora passado, que os anos de escola obrigatória, esses recordo-os como uma travessia no deserto, onde nada florescia nem se deixava florescer. Universidade. Um curso de Letras. Outras pessoas. Pessoas de sítios diferentes que tinham mais em comum comigo do que qualquer rapaz ou rapariga que tinha conhecido na minha cidade. Pessoas que liam, que escreviam, algumas que escreviam muito bem. Deixei-me afundar nesse mar de criação, de pensamento, cadáveres esquisitos que de nós saíam. Como tudo era tão simples, tão inspirador. As histórias surgiam-nos sem esforço, aconteciam à nossa volta. Comecei a procurar escrever sem ser só com aquela necessidade revoltada da adolescência. Encontrei aquilo que considero hoje ser um dos meus estilos. Realidade, interacções, auto-crítica, humor, desdém das coisas em geral. Continuei a escrever durante os meus vinte-e-poucos, inspirada principalmente por situações do dia-a-dia. Tinha um trabalho minimamente interessante e convivia com pessoas minimamente interessantes. Mas a seguir a isso veio a reviravolta, resumindo em meia dúzia de palavras. Crise, desemprego, tudo a pôr-se na alheta, eu a pôr-me na alheta. Passei a gastar o meu ímpeto criativo à procura de empregos, casas, estabilidade, etc. Aquela coisa gira que as pessoas aventureiras que não se conformam fazem quando têm vinte anos. O que escrevi durante esses tempos foi mais como um registo de tudo o que estava a acontecer, aquilo que era estar a viver numa das maiores cidades do mundo. E aí começou ele. O síndrome. Parei de escrever. Disse para mim mesma e para os outros, e deixei-o registado: "estão muitos mais a fazer isto e melhor do que eu".
Voltei a escrever quando regressei a Portugal, tal como em miúda, por necessidade, como um prolongamento de mim própria. Mas algo foi diferente desta vez. Leram-me. E quiseram ler mais. Comecei a escrever para uma plataforma web, e a ter feedback. Estava a acontecer pela primeira vez. E não me estava a sentir pior que ninguém. Já não estava na escola, já não estava a perder para colegas cujos pais lhe escreviam os textos dos concursos ou as letras das músicas para o 25 de Abril. Estava no mundo dos adultos, num cantinho particularmente especial em que só interessa o que temos para dizer. Depois veio a auto-sabotagem. Trabalho, não tenho tempo para escrever nem inspiração. Na realidade, nunca se tratou de tempo ou de inspiração. Merda, que eu sempre tive tanta coisa para dizer, tanta coisa a acontecer na minha cabeça. Sempre olhei de uma maneira diferente para as coisas. Então porque penso eu que ninguém se vai interessar pelo que eu escrevo? E mesmo que ninguém se interesse, continua a fazer parte do que eu sou. No fundo, é aquela necessidade vital. Fico bem se o faço, mesmo que seja só para mim. Mesmo que seja só um texto num blog. É bom estar aqui a fazê-lo. 

13
Jan24

Ser e tornar-se

É uma frase que está em todo o lado. Que leio e oiço desde sempre. Nas músicas, nos filmes, nos anúncios publicitários, nas bocas dos outros. "Be yourself! — Sê tu própria." Como se houvesse esta pressão do mundo para sermos nós próprios, mesmo até quando não sabemos quem somos. A promessa de que só assim, seremos felizes. E demoramos muito a perceber quem somos. Como a frase do Miles Davis de que eu me vou relembrando, — "Man, sometimes it takes you a long time to sound like yourself". Talvez muitos sortudos tenham a segurança de se conhecer desde cedo. Eu demorei a perceber quem sou. Crescer foi absorver tudo o que tinha disponível ao meu redor. E nem sempre o que estava ao meu alcance tinha a ver comigo, ou com a pessoa que melhor me encaixaria a ser. E por isso, tantas vezes me senti como um peixe fora de água, um comboio a descarrilar, ou simplesmente marasmada a olhar para a vida, que seguia o seu caminho sem eu ter controlo sobre isso. E depois, os pés que se punham à frente, e me fizeram tropeçar. As feridas que ficaram das quedas. A companhia da eterna dúvida. A vontade de tocar com a minha mão em algo maior, algo que nem tinha nome. Mas que era maior do que as conversas e os ruídos que ouvia nas mesas em que fui sentando. As coisas que fazemos para viver. E assim se vão passando os dias, e descobrir quem sou deixa de ser a prioridade porque há trabalho e afazeres, convites e declinos, presenças e ausências. E eu ocupada a viver os dias.
Até que percebi que sempre soube quem era, mesmo no meio das incertezas. Aquela menina que voltava a casa com os pais numa noite de verão, sentada no banco de trás, a contemplar o céu iluminado, e que pensava como tudo podia mudar e que dali a uns anos, tudo viria ser diferente, menos a lua que brilhava gigantemente aquela noite. Essa menina sabia quem era. A rapariga que estava prestes a sair de casa para começar a universidade, e que ligou o rádio numa noite de Setembro, para uma música grunge lhe berrar aos ouvidos a mesma frase. Essa rapariga sabia quem era. A jovem mulher que embarcou numa viagem só de ida para um país que nunca sequer tinha visitado. Essa jovem mulher sabia quem era.
Às vezes podemos perder-nos pelo caminho, provamos o licor da hostilidade, com um travo de solidão. Mas sempre voltamos para perto de nós mesmos. Ao lar que vamos construindo dentro da nossa alma, como uma casa para nos proteger dos perigos que tão bem conhecemos. Talvez esta "casa" acabe por ser essa tal coisa de sermos nós próprios. You were right Miles, it takes a long time.

08
Jan24

Vamos falar mal do inverno

Sei que é chato e que temos de passar por ele. Que é o inverno que nutre os solos que florescem bonitos na Primavera. Não sou propriamente aquela pessoa de se queixar das temperaturas baixas (até as prefiro às muito altas), e até sou muito caseirinha. E com isto, todos os anos penso que tenho é de aproveitar o bom que a estação me pode oferecer — mais tempo em casa. Hibernar nas horas fora do expediente, e ler mais livros, ver mais filmes, escrever mais, cozinhar mais. E isto tudo parece perfeito e fazível. Qual cenário de filme de Natal. Mas há dias difíceis nesta estação. Não sei se é da falta de luz solar, mas às vezes a motivação falta, até quando se trata de fazer as coisas que gostamos. Ficar no sofá a olhar para o tecto é a opção mais viável depois de um dia de trabalho que se arrastou infinitamente. 
Tudo bem, eu compreendo que o Inverno tem o seu charme. Aqui nas Europas é a estação do Natal e restantes festividades, podemos usar casacos bonitos e cachecóis fofos. Bebemos chocolate quente e alguns podem divertir-se na neve, etc, etc...
Isto tudo é muito bonito, mas vamos limpar este glamour todo à estação e vê-la pelo que realmente é. Como diriam os americanos, "a pain in the ass". Eu sei que o inverno não é uma pessoa, é uma estação do ano, é um acontecimento natural que metade do planeta atravessa de cada vez. Mas hoje vou falar mal do inverno como se fosse um político. Porque o inverno consegue ser bem besta. Só para referir algumas coisas que fazem do inverno uma chatice, principalmente em Portugal. É frio, em algumas zonas é mesmo muito frio. Parece que é sempre de noite. O aquecimento é caro. As contas do gás, luz e derivados, disparam. E as casas não estão preparadas. As gripes andam no ar. Até temos os chamados picos da gripe em que anda metade da população está doente ao mesmo tempo. As urgências hospitalares estão o caos. Para além das gripes, há cieiro e frieiras. Há mais máquinas de roupa para fazer porque aos trapos ocupam mais espaço, e não há bom tempo para os secar. As camisolas de inverno são bonitas mas ganham borboto. — "Olha, vou vestir aquela camisola que só usei duas vezes, mas parece ter dez anos!" — E Janeiro parece ter 331 dias. O frio tira a vontade de sair à rua para fazer seja o que for, mesmo que seja uma curta deslocação até um local aquecido. Deixar o carro na rua durante a noite é para esquecer, se não queremos passar meia hora na luta para lhe tirar o gelo de cima. Os dias de neve para quem tem de ir trabalhar são o apocalipse, andar de carro é um perigo e a pé muito mais. E o pior de todos os males — a humidade. A velhaca da humidade.
Eu poderia continuar a desbobinar todos os motivos pelos quais o inverno é a pior estação do ano. Mas a verdade é que sou das pessoas com menos queixas. Porquê? Porque tenho uma casa com aquecimento que posso sustentar, e dinheiro para comprar um bom casaco e umas botas quentinhas. Só gosta do inverno quem é realmente privilegiado. Não imagino sequer o que será esta estação para quem está numa situação carenciada. Quem não tem dinheiro para aquecer a casa, ou quem não tem casa de todo. Quem não tem dinheiro para comprar os medicamentos que atenuam os efeitos da gripe. Eu sei que o ser humano tem uma incrível capacidade de resistência e adaptação, mas todos deviam ter as mínimas condições necessárias para viver, principalmente nesta altura do ano.
E é por isso que a próxima pessoa que me disser que gosta do inverno, habilita-se a levar dois sopapos. Só os privilegiados é que gostam do inverno. E os amantes de fumeiro.

31
Dez23

Leituras favoritas de 2023 (e votos de Bom Ano Novo)

Não sei bem como, mas consegui ler mais de vinte livros este ano. Houve anos em que li mais, mas também já li menos. Ou seja, estive no meu ritmo normal de leitura. Não fiz dos livros a prioridade, mas a companhia. E eu penso que é assim que deve ser. Alguns números e desafios de leitura que se vêem por aí, assustam-me. Gosto de digerir os livros, e de escolher bem o que leio, e também não trabalho com livros (com muita pena minha), logo, nunca conseguiria ler setenta ou cem livros num único ano. Mas aplaudo e até invejo quem o faz sem comprometer mais nada. Quem me conhece bem, sabe que estou sempre com um livro para ler. Os livros fazem tanto parte da minha vida como o copo de água que bebo ao acordar, ou o café depois de almoço. Não consigo imaginar a vida sem ler, mas acredito que seria muito pior. Ler é terapia, é conversar com um amigo, é um dia no spa, é uma ida ao cinema, um passeio ao fim da tarde, uma viagem a outro lugar, é uma festa, é um luto... Enfim. A nossa vida cabe nos livros que lemos.
E de entre todos os que li este ano, há três que, sei bem, me vão marcar durante muito tempo.

3 - O Filho de Mil Homens, Valter Hugo Mãe
Uma prosa que é pura poesia, como tudo que é escrito pelo Valter. Já devia ter lido este há muito tempo. Logo a primeira frase despertou em mim sentimentos guardados a sete chaves. Este fica ali bem juntinho no coração ao meu favorito do autor, A Máquina de Fazer Espanhóis. Valter Hugo Mãe tem um dom para apalavrar as inconfessáveis emoções humanas.

2 - Stoner, John Williams
A vida de um não herói que é um herói no seu pequeno mundo. O retrato de realidades alheias umas às outras em que até o mais estóico é incompreendido. Um livro sobre uma "pessoa comum" que tenta conduzir a sua vida da forma mais justa, tentando seguir a sua paixão. Para o William Stoner, era a literatura. Se a sua vida foi realmente triste? Essa é a questão ambígua que fica no ar, terminada a leitura. Como ficar indiferente a este livro? Tem a "tristeza bela" que eu gosto na narrativa.

1 - Os Anos, Annie Ernaux
Descobrir Annie Ernaux foi como encontrar o pote de ouro no fim do arco-íris. Outros da autora são mais falados, mas este é o que guardarei sempre como referência. A história de uma mulher comum, na história de uma país, na história do mundo. Uma colecção de memórias e transformações pessoais que se confundem com as próprias transformações do século XX. A realidade francesa, que me é pessoalmente próxima, com alguns acontecimentos abordados pela autora a reavivarem em mim uma memória familiar. Neste, como nos seus outros livros que li até agora, é impossível não sentir uma intimidade com a escritora, até pela forma descomprometida e descomplexada com que Annie escreve.

E é isto. Faltam poucas horas para as doze badaladas, e assim termino o ano a fazer duas coisas que gosto também, escrever e falar de literatura. No ano que está prestes a começar, espero continuar com a boa companhia dos livros, e que seja sem pressas. Como escreveu Virginia Woolf nas suas resoluções de ano novo de 1931 (texto que curiosamente anda a circular muito nas redes socias), "às vezes ler, às vezes não ler".
Um feliz e tranquilo 2024 para quem me lê, e vão por mim, se tudo mais vos falhar, peguem num livro.

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